dos garis de Natal são homens


Fonte:   https://7uvw.xyz/ladodireitodaequidade/prefeitura-de-natal/garis-natal-homens/  

– Companhia de Limpeza Urbana de Natal, 2011.

Eles estão circulando pelas ruas, avenidas e, pelo menos três vezes por semana, aparecem nas portas de nossas casas levando embora o que jogamos fora e chamamos de lixo. O laranja do uniforme deveria chamar atenção dos transeuntes, mas, por muitas vezes, esses trabalhadores passam despercebidos pela grande maioria. Porém, se não aparecem, logo percebemos que algo está errado e a reclamação é geral. Há algum tempo, a profissão era marginalizada e somente os que não tinham oportunidades de estudo a escolhiam. O cenário mudou e hoje em dia é possível encontrar pessoas com diploma nas mãos dedicando-se à difícil tarefa de ser gari.

Na capital do Rio Grande do Norte, são 1.302 garis divididos em várias equipes de trabalho. Em dois expedientes por dia, o que soma 8 horas de trabalho, eles recolhem o lixo domiciliar, pintam meios-fios, podem árvores, capinam canteiros e, essencialmente, varrem e dão destino à sujeira que nós jogamos nas ruas. Por dia, são produzidas cerca de 500 toneladas de lixo. A maior parte do batalhão de homens e mulheres são servidores da Companhia de Limpeza Urbana de Natal (Urbana), mas existem trabalhadores terceirizados de duas empresas: Líder e Marquise. O salário base, R$ 600,00, é igual para todos. Com as gratificações, um gari pode receber pouco mais de R$ 1.200,00 ao final de cada mês.

Na Urbana o expediente começa cedo. A partir das 5h45 é servido o café da manhã em um pequeno refeitório localizado no fundo do prédio. É lá que, de segunda à sábado, Marconde de Lima, 47 anos, faz seu desjejum. Há 23 anos na empresa, Marconde conta que em nenhum momento sentiu-se inferior por ser gari. “Pelo contrário, devo tudo que tenho a esse emprego. Foi aqui que construí minha vida e criei meus três filhos. É motivo de orgulho esse meu emprego”. Atualmente, o homem de cabelos grisalhos trabalha dentro da própria Urbana, no setor de Serviços Gerais. “Aqui dentro é mais tranquilo, mas no início trabalhava na equipe de palanques e o serviço era pesado”, lembra.

O “serviço pesado” não é empecilho para quem deseja ter um emprego estável. No último concurso público realizado na Companhia, iniciado em 2005, 22.281 pessoas disputaram as 440 vagas para garis e auxiliares de serviços correlatos oferecidas. Entre os inscritos, havia candidatos de diversas classes sociais. Entre os aprovados, estava Samuel da Silva, 40 anos. Ele assumiu o cargo no dia 1º de julho de 2010. “Decidi fazer o concurso porque fui demitido do meu emprego anterior. Trabalhava como pedreiro. Com o dinheiro da indenização, montei uma vendinha na minha casa. Mas o dinheiro estava pouco então resolvi ser gari”, relata.

A esposa de Samuel, Elisângela de Lima, também fez a prova mas, diferente do marido, não foi aprovada. O casal tem um filho de 4 anos e moram numa casa de primeiro andar no bairro das Quintas. Com o salário que recebe da Urbana mais o lucro com as vendas na pequena mercearia, Samuel conseguiu comprar um carro e reformar a casa que foi deixada como herança pelos pais dele. “Tem gente que pensa que só porque a gente é gari tem que morar em favela. Não é assim. Sabendo economizar, todo mundo pode viver bem”, conta.

Mas o trabalho de gari também trouxe problemas para Samuel. Com o esforço físico que fazia recolhendo pneus e varrendo ruas, na perna esquerda surgiram algumas varizes. Ele afirma que o problema existia antes de ser gari, porém, foi na labuta com vassoura, pá e carrinho coletor de lixo que as varizes aumentaram. “Falei com o pessoal da direção e eles vão me encaminhar pra outra turma onde o trabalho não seja tão puxado. E vou procurar um médico para ver isso”.

Quantidade de profissionais é insuficiente

O encarregado pelo setor de limpeza da Urbana, Ivanilson Paixão, explica que os garis são divididos nas seguintes turmas de trabalho: feiras livres, pneus, ecopontos, podação e entulho, varrição noturna, transbordo de Cidade Nova, capinação e pintura, roçadeiras, palanques e coleta. “Essas turmas trabalham no Centro, Alecrim, Ribeira e realizam coleta na zona Norte. As demais zonas são de responsabilidade das empresas Líder e Marquise”.

A Companhia de Limpeza e os representantes dos garis divergem com relação ao número de trabalhadores que atuam em Natal. Segundo o diretor de operações da Urbana, Alexandre Miranda, a média mundial é de que haja 2 garis para cada um mil habitantes. “Considerando que a população de Natal é de 800 mil habitantes, temos um déficit de apenas 300 garis. Mas isso não é problema. Com o nosso quadro conseguimos realizar um trabalho satisfatório”, coloca.

Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Asseio, Conservação e Limpeza Urbana do Rio Grande do Norte (Sindlimp/RN), vereador Fernando Lucena, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que sejam 3 garis para cada mil habitantes. “Em Natal a proporção é de 1,2 garis. Perdemos para Mossoró. Lá existem 2 garis para cada mil habitantes. O déficit na capital é de 1.500 garis”, alega. “Tem bairros que estão há mais de cinco anos sem receber a limpeza adequada”, completa.

A relação entre os empregadores e o sindicato, que tem em torno de quatro mil associados, é tumultuada, segundo Lucena. “Sempre há conflitos. Nossa categoria é a que mais faz greve. Temos em média uma paralisação por mês”, diz.

Nas ruas, a reclamação dos garis é com relação à falta de material de trabalho adequado, uniformes novos e desrespeito da população. “O carro coletor que estamos usando é muito velho. Quebra demais e a gente tem que consertar tirando dinheiro do próprio bolso para pagar”, diz Antônio Batista, 65 anos, gari desde 1988. “Se a população contribuísse, não jogasse lixo nas ruas, seria bem mais fácil. E não é só isso. Acontece também da gente juntar o lixo num canto, dentro dos sacos, e pouco tempo vai alguém lá e rasga o saco”, reclama José Borges, 47, há 25 anos na Urbana.

“Decidi ser gari porque o salário é melhor do que o de professor “

Além do uniforme bastante característico, os garis que fazem a varrição das ruas usam pá e vassoura e um carrinho coletor com vários sacos para guardar o lixo. Na cabeça, boné para se proteger do sol. O protetor solar e as luvas fornecidas pela Urbana também fazem parte dos itens obrigatórios. Os homens são maioria nesse universo. Mas há espaço para o chamado “sexo frágil”. Na Urbana, são cerca de 50 mulheres que saem de suas casas, todos os dias, para limpar as ruas de Natal. Em meio à sujeira e o esforço físico, elas não esquecem a vaidade. O batom e as bijuterias, para essas profissionais, também são indispensáveis.

As mulheres fazem parte da turma de varrição nas zonas Norte e Leste. Os motivos que levaram elas a escolherem essa profissão são vários: desemprego, estabilidade do funcionalismo público e até mesmo vontade de servir à população. A escolaridade desse gênero é mais alta. É o caso de Francimar Matias, 39 anos. Formada em Pedagogia, ela largar tudo e decidiu, em 2005, fazer o concurso público oferecido pela Urbana. Disputou uma das 100 vagas para auxiliar de serviços correlatos, passou na 78º colocação e foi convocada em 2007.

A ex-professora dava aulas em uma escola privada e ganhava um salário mínimo ao final do mês. “Trabalhava muito e achava que pagavam pouco. Decidi ser gari porque o salário é melhor do que o de professor. Hoje sou feliz com o que faço”, diz. Casada e mãe de três filhos, Francimar valoriza sua nova profissão, mas conta que algumas pessoas ainda desrespeitam os garis. “Acho super importante o que estou fazendo. Não me envergonho de varrer a rua, pelo contrário, sinto orgulho. Infelizmente, existem alguns que nos menosprezam, mas são poucos”.

Na manhã da última quinta-feira, Francimar varria e colhia o lixo de um trecho da avenida Itapetinga, na zona Norte. Para auxiliar o serviço, ela contava com a ajuda de Ione Dias, 52 anos. Ambas, além da garra e força para trabalhar, compartilham do sentimento de felicidade por servir à população. “Gosto muito desse trabalho, me sinto realizada em ajudar a cuidar da cidade”, diz.

Entre uma varrida e outra, as amigas não descuidam da beleza. No bolso da uniforme, além do protetor solar, elas guardam espelho e batom. Os brincos e o colar compõem o figurino. “O batom não pode faltar, né? Também não saio de casa sem brincos. Mulher tem essas vaidades mesmo”, diz Ione. “O trabalho é pesado, mas nem por isso precisamos ficar feias. Não deixo de passar o protetor solar e de vez em quando retoco o batom”, afirma Francimar.

Antes de trabalhar no meio da rua, debaixo de um sol escaldante, Ione Silva era funcionária de um banco privado. No local, passou por diversas funções, mas, após alguns anos de dedicação, foi demitida.  “Fiz o concurso sem me preparar. Não estudei. Fui com a cara e a coragem e deu certo, fui aprovada”. Na Urbana, ela está desde 2009. “Estou gostando do serviço. Para quem estava há tanto tempo sem um emprego, está bom demais. Só agradeço a Deus”

Depoimento

“O serviço é pesado e solitário”

Na tarde da última quinta-feira, uma mesa com três bolos pequenos – desses que se compra por R$ 5 nas casas especializadas – e duas garrafas de guaraná esperavam os garis que fazem a varrição noturna no bairro do Alecrim. O local de encontro é a quadra de esportes da Escola Estadual Padre Miguelinho. Às 16h, chega o primeiro gari. Valfredo de Andrade, 59 anos, que está na Urbana há 25 anos. Antes dele, o aniversariante do dia, Joaquim Pereira da Silva, havia preparado o ambiente para a comemoração. Seu Joaquim não trabalhou naquele dia. Ele está de férias, mas resolveu visitar o lugar e levar os bolos para “os amigos lembrarem da data”.

Pouco a pouco, os demais vão chegando. Foi nesse clima festivo que fui recebido pela turma de 27 garis responsáveis pela limpeza de um dos bairros mais tradicionais da cidade. Vestido com um uniforme novo cuja cor laranja ainda estava viva, logo desperto a curiosidade de alguns. Em tom de brincadeira, um grita: “Coloca ele na rota mais difícil”. Os demais riem do novato. O responsável pela turma, logo entrega: “Ele não é gari. O rapaz é jornalista e está aqui para saber como é o nosso trabalho”.

Mais que conhecer o trabalho, queria saber, e sentir, qual a reação das pessoas ao se deparar com um gari. Há desrespeito? Desprezo? Quais as dificuldades? Como a sociedade enxerga aquele que é o responsável por recolher o nosso lixo? Com essas perguntas em mente, vesti a farda, peguei vassoura, pá e carrinho coletor e saí por algumas ruas do Alecrim.

Logo na saída da Escola, o primeiro obstáculo: trânsito. A movimentação na avenida Coronel Estevam, às 17h, é grande. É difícil conduzir um carrinho em meio a carros, ônibus e motos.

Próximo à escola, algumas pessoas aguardavam os ônibus. Aproximo-me delas e, meio sem jeito, começo a varrer o local. A vassoura é maior e mais pesada que aquelas usadas em casa. Tento encarar as pessoas mas ninguém parece estar preocupado com minha presença.

Perto de um poste, havia lixo acumulado. Peço licença e desejo boa tarde a uma jovem que estava no local segurando uma criança. A resposta é o silêncio. Ao recomeçar a varrer, a mãe avisa ao filho: “Saia do meio, olhe o homem do lixo!”. Passo mais um tempo no local. Pessoas descem e sobem nos ônibus e passam por mim sem olhar.

O serviço é pesado e, no meu caso, solitário. Os garis preferem sair mais tarde, depois das 18h, quando os comerciantes estão fechando as portas e as ruas estão mais vazias. Em duplas, eles varrem e recolhem todo o lixo do dia.

Decido ir para outro local. Outra parada de ônibus. Dessa vez, na rua Doutor Mário Negócio. Antes, varro a calçada do cemitério do Alecrim. Alguns pessoas também esperam a condução. O lixo acumulado no meio-fio é o mais difícil de ser retirado. A vassoura não entra no vão existente entre o asfalto e a calçada e não há outra maneira de limpar senão com a mão. De novo, percebo que as pessoas não estão preocupadas com minha presença.

Na parada em frente ao cemitério, passo mais um tempo varrendo. O suor já escorre pelas pernas e testa. O carrinho é baixo e arrastá-lo por muito tempo causa dores nas costas. Passo mais um tempo varrendo alguns trechos e retorno para o local de encontro dos garis.  Todos já chegaram e querem saber como foi minha experiência. Mais que escutar, eles querem falar. “Coloque aí que precisamos de carrinhos novos”, diz um. “Estou com o mesmo uniforme há mais de um ano”, reclama outro. “O meu uniforme ainda é do tempo que estava fazendo treinamento”, completa outro.

O grupo sai todo ao mesmo tempo. O pequeno exército de homens e duas mulheres se mistura aos transeuntes e veículos que cruzam as ruas. Ainda não são 18h. O expediente só acaba depois das 23h. Depois da labuta, o destino é a casa. O sono descansa o corpo para mais um dia de trabalho que virá.

– Roberto Lucena, “Garis: dedicação silenciosa e trabalho pesado”, Tribuna do Norte, 24.07.2011. http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/garis-dedicacao-silenciosa-e-trabalho-pesado/189907

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